O Brasil vive um momento em que o sistema de saúde suplementar e o sistema judiciário estão sob pressão para assegurar direitos básicos a pessoas cuja identidade de gênero não se alinha às normas tradicionais de masculino ou feminino. Casos recentes demonstram que essa realidade ainda está longe de ser universalmente aceita. A negativa de cobertura para intervenção corporal, mesmo quando há parecer técnico favorável, revela que dimensões legais e institucionais seguem resistentes. A ausência de uma política pública clara cria uma zona cinzenta em que decisões judiciais variam muito de local para local.
A trajetória de quem busca afirmar a identidade corporal muitas vezes passa por longas lutas com planos de saúde que argumentam falta de laudos ou de acompanhamento especializado. Mesmo quando há documentos médicos e acolhimento terapêutico estabelecido, nem sempre isso é suficiente para convencer operadoras que tentam caracterizar o procedimento como uma escolha estética. A resistência institucional demonstra uma lacuna entre direitos reconhecidos em leis ou decisões e sua aplicação prática. Isso gera sofrimento, demora injusta e custos emocionais que vão além da burocracia.
A atuação de advogados especializados que defendem direitos de pessoas trans e não binárias tem sido vital para estabelecer precedentes. Escritórios que costumam atuar nessas causas trazem experiência, coleta de documentação multidisciplinar e argumentação jurídica com base no princípio da dignidade humana. Essas atuações são estratégicas não só para casos individuais, mas para consolidar jurisprudência favorável que possa servir de base para outros processos similares. O impacto vai além de cada sentença: envolve sensibilização do sistema judicial, melhoria de entendimento médico-legislativo e conscientização social.
Também é importante destacar que o prazos processuais e o tempo que se leva para judicializar esse direito impõem uma tensão enorme sobre quem busca essa afirmação corporal. A espera muitas vezes implica em manter sofrimento psicológico ou viver em desconformidade corporal por anos. Isso reforça como o direito à saúde, previsto em diversas normas, precisa ser efetivado de modo ágil. Demoras enfraquecem o reconhecimento da identidade, afastam o acesso aos tratamentos disponíveis e prolongam práticas de negação.
O princípio constitucional de igualdade e o reconhecimento da identidade de gênero como parte da pessoa humana exigem que decisões judiciais não se apoiem em normas que invisibilizem ou excluam pessoas não binárias. Esse princípio deveria orientar não só leis, mas também decisões médicas, planejamentos de políticas públicas e atuação do sistema de saúde. Quando juízes ou operadoras exigem laudos desproporcionais ou insistem em diagnósticos que não se aplicam à realidade de cada corpo, evidenciam-se práticas que contrariam valores básicos de dignidade e autonomia.
No meio disso tudo aparece a necessidade de qualificação técnica de profissionais de saúde e do judiciário para lidar com identidades diversas. Formação continuada, diretrizes claras de órgãos reguladores, recomendações de entidades médicas e protocolos que considerem diferentes trajetórias de identidade são ferramentas fundamentais. A falta de preparo institucional reflete-se em decisões contraditórias, ausência de entendimento sobre corpos distintos e na repetição de exigências desnecessárias que apenas prolongam o sofrimento de quem busca o reconhecimento.
Mudanças legislativas ou normativas também têm papel crucial. Embora existam decisões que garantem o direito, como em casos onde tribunais superiores reconhecem expressamente identidades diversas, ainda falta uma lei federal que estabeleça diretrizes claras sobre procedimentos de afirmação de gênero, autonomia corporal, prazos, critérios e cobertura obrigatória por planos de saúde. Essa lacuna permite que operadoras ou instâncias judiciais interpretem regras à própria maneira, muitas vezes favorecendo quem expõe menos. Ter uma norma clara reduziria incerteza e melhoraria acesso.
O direito de afirmar o corpo, em sua expressão de identidade, é um direito humano que precisa deixar de depender da sorte de encontrar advogados dispostos, decisões judiciais favoráveis ou momentos de sensibilização. O reconhecimento dessa dimensão exige do Estado respostas estruturadas, acolhimento institucional, treinamento e comprometimento para que vidas reais não mais se percam nas brechas legais. A justiça plena passa por uma prática que assegure que cada pessoa possa viver alinhada com quem é, sem obstáculos desnecessários.
Autor: Tiberios Kirk